segunda-feira, 31 de agosto de 2015

O JARDIM DO TEMPO SEM TEMPO


Lá na esquina havia aquela casa estranha, meiga, sensual. De sua porta se chegava ao jardim, onde (quando) o tempo parava e as pessoas não envelheciam.
Na outra porta, quando elas voltavam para dentro da casa, retornavam à sua idade normal. Algumas até morriam, porque o tempo delas já havia passado há tempos.
Entretanto, as pessoas do jardim (havia muitas pessoas lá) não deixavam as que queriam voltar atravessar a porta de volta.
Na varanda havia um interruptor que parava o tempo sem tempo, mas ele só podia ser acionado por alguém que estivesse no tempo.
No jardim sem tempo existiam aves mágicas que podiam nos carregar para as montanhas. Elas tinham o dom de sugar o pensamento das pessoas com o bico, livrar-lhes de suas memórias. E passando as asas pelos dentes dos humanos conseguiam ler tudo sobre eles. Era uma tradição antiga ensinada pelo grande pássaro negro.
Dentre elas, havia uma passarinha linda, nova, cor de fogo, tão linda e pura quanto sapeca e cheia de vida. A passarinha tinha sempre consigo um arco com flechas que faziam as pessoas se lembrarem de tudo o que tinham vivido de uma só vez, em um só fôlego. Era um choque, claro.
Algumas pessoas ficavam imobilizadas por algum tempo para após sucumbir em sonhos do que não viveram, outras não aguentavam a descoberta, percebendo o que eram realmente. A maioria simplesmente não entendia nada e voltava ao normal depois de alguns infinitos segundos que se desmanchavam como confeitos de açúcar em um breve e delicado instante, esquecendo novamente o passado e o presente, voltando ao futuro que nunca chegou, de onde todos eles haviam saído.
Havia também naquele jardim muitas criaturas mágicas disformes, que na realidade eram pessoas que estavam lá por uma eternidade e haviam se transformado nelas. Estas, se saíssem do jardim, simplesmente desapareciam. Elas eram alegres, felizes e brincalhonas, mas não tinham nenhuma memória. Não se lembravam de nada. Simplesmente iam vivendo o momento sem nem ao menos saber o que acabavam de ter feito no instante anterior.
A passarinha arqueira tinha três criaturas disformes como amigos. Ela na verdade tinha também entrado por uma porta no jardim. Uma outra porta que dava para o seu mundo original. Ela havia sido sequestrada pelo grande pássaro negro, que a fazia de aprendiz.
Certa vez atravessou a porta um doce garoto de semblante sério e olhos brilhantes. Entrou e foi surpreendido pela passarinha, que tentou assusta-lo para fora do jardim, de volta à porta que o tiraria de lá.
O problema era que, ao entrarem no jardim do tempo sem tempo, todos ficavam leves e se sentiam bem. Não queriam mais sair, não queriam voltar. Corriam na vontade de conhecer aquilo tudo antes de voltarem. Era como todos os que ali chegavam se sentiam. O jardim era lindo, cheio de mistérios e sensações novas. Mas era imenso, infinito. Nunca se podia conhecê-lo por inteiro, ou ao menos se sentir saciado a ponto de se querer sair de lá. A vontade era de se continuar seguindo em frente em busca de novidades, impelido pela curiosidade e pelo alívio de se sentir livre. Por isso raros eram os que voltavam a tempo de saírem inteiros, com suas memórias. Alguns eram salvos pelo susto que pregava a passarinha, direcionando-os de pronto à porta de retorno.
Ela fazia isso constantemente sem que o grande pássaro negro soubesse. E os outros habitantes do jardim não percebiam isso, pois não entendiam o porquê daqueles acontecimentos, não entendiam nem precisavam entender. O entendimento se perdera com a memória.
Já seus três amigos disformes simplesmente não lembravam de nada para que o grande pássaro negro pudesse sugar depois seus pensamentos, perguntando sobre algo. Por isso ela os tinha como amigos. Porque podia tê-los sem machuca-los, sem oferecer a eles qualquer risco.
Ela, de alguma forma, quando entrou no jardim, não se deixou levar pela curiosidade ou pelas sensações. Caso raro, talvez único. Só acontecia de aparecer alguém assim no jardim do tempo sem tempo de muito em muito tempo. Como lá não havia tempo, pode-se dizer que simplesmente não aparecia ninguém assim lá. Ou, se apareceu, nenhuma criatura disforme iria lembrar mesmo, e as que tinham forma, estavam muito ocupadas com as sensações e outras buscas de esquecimento. Na verdade, suas memórias ficavam restritas ao que eles viviam a cada instante no jardim, e tudo de forma muito nebulosa. Era como se eles apenas tivessem sonhado com aquilo. Como um sonho bom de um despertar ruim. Um pesadelo que não valia a pena lembrar.
Quando aquele garoto apareceu, com suas dúvidas e suas certezas, com seus olhos e suas palavras, com sua doces mãos em busca de toque, logo a passarinha percebeu que ele era como ela, e que ele seria a pessoa que havia procurado para dar e receber amor, único remédio para a ausência de dor. Por isso tratou de pegá-lo antes que o grande pássaro negro o fizesse. Ela iria levá-lo para uma montanha escondida onde pudessem se entender, se comunicar sem palavras, ganhar forças para o que viria pela frente.
Mas no caminho o grande pássaro negro apareceu e os levou para a sua montanha, onde costumava apalpar os dentes das criaturas e sugar seus pensamentos mais profundos.
A passarinha, desesperada, só teve tempo de dizer ao garoto que não pensasse em nada, para que seus pensamentos não fossem roubados, e com eles, a sua memória. 
Mas de nada adiantou. O garoto não conseguiu deixar de pensar, e o grande pássaro negro se pôs a sugar, a sugar, a sugar...
E quanto mais sugava, mais o garoto pensava, sempre firme, forte, seguro e certo. Sempre o mesmo infindável pensamento, que não se esgotava, que não se perdia, que não se cansava.
Aquele pensamento que tentou salvá-lo, e que o salvava. Aquele pensamento que se tornou carne, ossos, espírito. Aquele pensamento que o amava, que era por ele amado, que vivia, e queria fazer viver.
Aquele pensamento que o tinha atravessado com a flecha da eternidade, do instante que a cada instante morre para instantaneamente renascer.
Como alguém disse uma vez, "o maior tesouro vale muito mais do que cem vezes o seu peso em ouro e custa muito mais do que vale. É a cura".

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