sexta-feira, 6 de setembro de 2013

A METAMORFOSE


Por Edson Vidigal

E mais uma vez ele se via encurralado entre a sua culpa e a redenção de outros, entre o amor eterno, e a luta diária. Entre o que sempre quis ser e o que nunca foi. Mais uma vez ele se via vítima de si mesmo, de um “eu” que já não mais fazia parte de seu futuro, de sua crença.

De que me vale o que sou, se não para o que posso ser? – Era o norte que buscavam seus pensamentos migrantes para o inverno no sul.

Mais uma vez ele se via acuado, jogado à parede de sua certeza, condenado de sua convicção. E seu algoz nada mais era do que sua plantação de outrora. Frutos de um processo de intenso cultivo e dedicação. De intenso semear, regar, cuidar, podar, adubar e ver crescer.

Do processo de acusação constavam suas idéias. Idéias que já pertenceram a tantos outros que um dia sonharam em tê-las. Idéias que eram passos em um longo caminho tortuoso que um dia escolhera seguir.

Mas o que não podia entender era realmente o “como viera a chegar ali”. O “o que sou” já não importava. Assim como o “o que fui” ou o “o que serei”. As certezas a cada vez mais se fundiam em uma só: sua inalienável humanidade. Seja lá o que isso possa significar – Pensava ele.

Ele sabia de suas idéias. Idéias que moldavam cada curva, cada aspecto e cada vazio de seu ser. Ele sabia que queria viver. É, viver sempre esteve presente em sua lista de prioridades. Por mais que ele tampouco soubesse, ou melhor, tampouco se sentisse à vontade a afirmar o que exatamente aquilo significava para ele. Viver! Vir e ver. Ou mais. Definitivamente era mais. Mais o quê? Os “o quês” há muito que já haviam perdido a importância.

“O quês” já foram muito divertidos em outros tempos. E palavras nada mais eram do que pecinhas de encaixe em uma grande brincadeira de montar, onde cada tijolinho conspirava com verdades recentemente descobertas.

Agora não importavam mais. Não importava mais o que o noticiário tinha a dizer. Não importava mais o que ele pudesse pensar ou analisar disso. Não importava mais o que esperavam dele, e muito menos o que ele esperava dos outros. Simplesmente não importava.

Um mundo cada vez mais seu era o que crescia em seu autismo iminente. Um mundo onde ele era o que era. E assim que ele se via. Sou o que sou.

Lembranças eram o que lhe impeliam  a buscar algum consolo para o fato de que ele só conseguia se encontrar no que de fato ele era naquele momento.

E não conseguia entender o porquê de hoje se sentir tão igual ao que era em suas lembranças, não obstante lhe dizerem a todo o momento: “_no que você se transformou?!”. Não obstante sua consciência de si lhe lembrar a todo o instante um breve e perpétuo “devir”.

Aquele rostinho redondo, com cabelos cuidadosamente penteados, partidos para o lado; e um olhar imenso, inocente, sereno, compreensivo e carente de compreensão, não destoavam de um semblante confortado e confortante, ainda intacto das expressões causadas pelas descobertas do crescimento. E uma alegria jovial inerente a toda criança saltava curiosa do brilho de seu olhar e dos cantos de seu sorriso já desde cedo um tanto quanto reprimido por influência de algum fator oriundo de seu pai (presente genético ou ambiental). Tudo isso emoldurado em um pijama azul limpinho, bem passado, que haveria de ser dobrado e arrumado embaixo de seu travesseiro diariamente a cada nascer do dia, à espera de mais uma noite tranqüila embalada ao som de Chopin.

Essa era a imagem que ele tinha de si a cada tentativa de lembrança. Um retrato mental que sua mente tivera o capricho de guardar.

Várias lembranças de fatos, pensamentos, sentimentos, alegrias, tristezas, inconformismos e conformismos foram se somando à sua  memória. Várias convicções e certezas. Várias decepções e indiferenças. Sua alma foi exposta à vida e suas facetas, talvez de forma mais abrupta em certos aspectos, talvez de forma mais sutil em outros. Mas sempre foi movido pela mesma razão: a vida. E a cada vez que procurava, encontrava em si aquele auto-retrato talvez tirado por outra pessoa em um determinado dia de sua infância. Aquela referência  à sua caminhada.

“No que você se transformou?!” – pensava ele. E sinceramente não encontrava respostas.

Pensava sempre em histórias sobre seu pai que lhe eram montadas em sua cabeça com a ajuda de cacos e estilhaços que juntava pelo caminho. Sejam elas provenientes de suas memórias, sejam da memória dos outros. O fato era que seu pai era um mosaico de relatos que ele ia catando pelos cantos e colando pedacinho por pedacinho na tentativa de tentar um dia saber quem de fato seu pai era. E tais pedacinhos não faziam sentido.

A história é cheia de buracos e contradições, e ele acha mesmo que nunca saberá exatamente a realidade dos fatos. Mas o que é a realidade dos fatos? E pra que ela serve? Isso já não importava.

O fato é que ele não reconhecia seu pai, e se perguntava se mesmo ele ainda se reconhecia.

Ele se revezava entre dois pais. Um que um dia, ao ver seu filho apanhando na saída da escola, pulou uma cerca e foi correndo em seu socorro. O outro que, vendo seu filho em apuros, preferiu fingir que não viu, ou que não era com ele.

Ele tentava se manter pensando na imagem de um pai que, a despeito de tudo e todos, venceu o sistema; em detrimento à imagem de um pai que se deixou ser absorvido pelo sistema a ponto de não se conseguir mais ver contrastes entre eles, sendo um a própria emanação e encarnação do outro.

Quem era seu pai? Quem foi seu pai? Estas perguntas ecoavam de geração a geração em sua família em uma eterna crise de identidades.

Mas para ele isso já não importava. “quem-eras” e “quem-fois” já não importavam.

“No que você se transformou?!” – Pensava ele.

Lembrava que o que o movia era a crença na vida. No devir. Na mudança. Ele acreditava que tudo podia mudar. O mundo podia mudar. Os governantes, os governos, as pessoas. Ele acreditava que podia fazer a diferença para um mundo melhor. Ele acreditava nas mudanças. Ele acreditava nas pessoas. Ele acreditava em si. Ele acreditava.

E sua vida continuou, ele casou, teve filhos, arranjou um emprego conceituado e se tornou um cidadão respeitado.

Muito tempo depois, num domingo à tarde, enquanto assistia a um programa de auditório da televisão, ouviu de um comediante algo que há muito não escutava: “ No que você se transformou, seu animal?!”

Atônito, riu da piada demoradamente, enquanto se lembrava que houve um tempo em sua vida que era normal ele escutar tal pergunta.

E pensou: “No que você se transformou?!”.

Olhou para o relógio e percebeu que já estava atrasado. Bebeu um ultimo gole de cerveja, levantou de sua poltrona e foi levar a esposa e as crianças para passearem no shopping como fazia todos os domingos. Afinal, amanhã começaria mais uma semana de trabalho e ele precisava aproveitar o dia. Não podia ficar perdendo tempo com besteiras que já não importavam mais.

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